Condenado injustamente por abuso sexual dos filhos deixa prisão em SP
Filhos foram obrigados a mentir para denunciar o pai
Condenado injustamente por abuso sexual contra os próprios filhos, o vendedor Atercino Ferreira de Lima, 51, deixou a penitenciária de Guarulhos (Grande São Paulo), na manhã desta sexta-feira (2), um dia após ser absolvido pela Justiça.
“Quero ir para casa, comer uma pizza, tomar cervejinha com meus amigos e curtir minha família que eu mais amo e mais quero na minha vida”, afirmou à imprensa.
O caso ganhou repercussão após ser revelado pela Folha de S.Paulo, quando os próprios filhos resolveram mudar o teor de seus depoimentos que fundamentaram a condenação do pai.
No ano passado, Andrey Camilo Lima, 24, e Aline Lima, 22, disseram à Justiça que na época da denúncia, quando tinham seis e oito anos, mentiram sob ordens, em meio a espancamentos, de uma amiga da ex-mulher de Atercino, com quem moravam.
De 2004, ano da denúncia, a 2017, o vendedor apresentou diversos recursos em liberdade, até ser preso quando estava em seu local de trabalho, em abril de 2017.
Nesta quinta-feira (1º), o 7º Grupo de Câmaras do tribunal paulista seguiu o voto do relator, o desembargador França Carvalho, e decidiu, de forma unânime, pela absolvição de Atercino sob a alegação de que a retratação das então vítimas era suficiente para a revisão da condenação. Cabe recurso da decisão.
O pedido de revisão criminal analisado pelo TJ paulista foi o primeiro caso apresentado à Justiça pela organização não governamental Innocence Project Brasil, criada em 2016 por um grupo de advogados criminalistas de São Paulo que presta assessoria jurídica a pessoas vítimas de erro judicial. No momento, a Innocence Project analisa 56 pedidos de assistência advindos de todas as regiões do país.
Segundo a advogada Dora Cavalcanti, fundadora da ONG, o recurso de Atercino avançou ao levantar novos depoimentos e um laudo psicológico que refutou a possibilidade de os irmãos terem sido abusados sexualmente pelo condenado.
“Foi um caso que a gente estudou muito. Tivemos desde o início a absoluta certeza de que se tratava de um erro judicial em que essas crianças, hoje adultas, foram coagidas e forçadas a criar essa ficção”, disse.
Em agosto, os irmãos sentaram-se em frente a uma câmera e, na presença do juiz da 4ª Vara Criminal de Guarulhos (SP) e de um membro do Ministério Público, reafirmaram a inocência do pai. Descreveram torturas supostamente praticadas pela amiga da mãe, como ajoelhar em grãos de milho e espancamentos com cabos de vassoura.
A violência era tanta, segundo o filho mais velho, Andrey, que ele fugiu de casa algumas vezes para ir morar em abrigos. Já adultos, os irmãos procuraram o pai, que os recebeu bem.
MELHOR DIA
Andrey tentava ser ouvido pela Justiça para livrar o pai da acusação desde 2012. Nesta quinta, comemorou o resultado. “Foi o melhor dia da minha vida. Em meio a tanto termo técnico, eu só entendi que ele foi absolvido quando todo mundo começou a se abraçar”, disse após a audiência.
Na primeira ida ao TJ-SP, Andrey tentou falar pessoalmente com os desembargadores que analisavam um recurso da defesa do pai, mas seu depoimento foi rejeitado porque os juízes entenderam que não seria juridicamente possível ouvi-lo naquela fase.
Após a recusa, Andrey registrou uma declaração pública em cartório na qual afirma que “nunca” sofreu abuso de seu pai e que foi instado a mentir à polícia. Em 2015, aos 18 anos, a irmã Aline fez declaração semelhante.
Em 2014, o caso chegou ao STF (Supremo Tribunal Federal), mas a relatora Rosa Weber rechaçou o pedido, mencionando súmula que veta, “em recurso extraordinário, reexaminar fatos e provas”.
Na análise do processo, de 829 páginas, os advogados da Innocent Project encontraram uma série de pontos estranhos e mal explicados, como os dois laudos de exame de corpo de delito que, ao não constatar vestígio de violência sexual e descartar “conjunção carnal”, desmentiam parte dos depoimentos das crianças.
Além disso, uma segunda denúncia de abuso sexual feita pela ex-mulher, desta vez contra colegas do filho em uma escola estadual, caiu no esquecimento sem qualquer comprovação -Andrey também negou essa denúncia.
Em outro ponto duvidoso, as crianças disseram que os abusos ocorreram na casa da família, à noite. Porém, a própria mãe afirmou à polícia que nunca ouviu ou soube de nada errado nos dez anos de casamento. Ela nunca presenciou os supostos abusos.
ORIGEM DA DENÚNCIA
A história da condenação de Atercino remonta a 2002. Após uma década de casamento, ele e sua mulher, uma assistente comercial, se separaram. Ela foi morar com sua amiga e os filhos. Atercino casou-se novamente.
Em dezembro de 2003, as crianças foram levadas pelas duas mulheres à Delegacia da Mulher de Guarulhos. Aos policiais e uma psicóloga, disseram ter sido vítimas de abuso pelo pai, antes da separação.
Tudo começou com a amiga da mãe. Ela disse à polícia que “passou a desconfiar” que “algo estava acontecendo” depois que o menino teria chegado da escola com sinais físicos de maus-tratos. Após “apertá-lo”, expressão usada por ela, alertou a mãe, que levou todos à polícia.
A Promotoria pediu a condenação de Atercino a 45 anos de prisão. Arrolou como testemunhas apenas as crianças, a mãe e sua amiga. Após recurso, o TJ-SP reduziu a pena para 27 anos de reclusão.
OUTRO LADO
A reportagem procurou o Ministério Público para saber se o órgão pretende recorrer da decisão, mas até esta publicação, não obteve resposta.
Em manifestação anterior, a Promotoria disse que Andrey “foi vítima de abuso sexual pelo réu e, quando ouvido em juízo, não teve dúvida em apontar o pai como o autor do crime, que consistiu na prática de atos libidinosos”, em referência ao depoimento prestado pelo filho quando ele ainda era criança.
Já a família da mulher que teria agredido os irmãos nos anos 2000 não foi localizada. Em reportagem anterior sobre o caso, afirmou que só prestaria esclarecimentos à Justiça.
*Com informações da Folhapress.